Finalmente, tudo acabou e estamos todos no paraíso! Jesus voltou e resgatou seus filhos deste mundo terrível, cheio de tristeza e sofrimento. Aleluia! Estamos todos agora reunidos para o grande côro celestial, como a Bíblia diz (Apocalipse 14:1-5). Entra em cena Abelzinho, nosso personagem cristão devoto que viveu para ver a volta de Cristo e passou por todas as tribulações do fim dos tempos previstas nas Escrituras (Mateus 24).
Num piscar de olhos Abelzinho foi transformado e ascendeu ao céu com Cristo e seus anjos, bem como aqueles que fazem parte da Igreja de Cristo; fiéis que guardaram sua Palavra ao longo dos séculos. Ele se prepara e, com suas vestes brancas e coroa na cabeça, se junta aos milhões para entoar o Cântico do Cordeiro. A música, curiosamente, inicia ao som de guitarras, contrabaixo, bateria e um teclado semelhante à música “Jump”, da banda Van Halen. A letra do cântico é exatamente aquela relatada na Bíblia, mas a melodia de fundo difere radicalmente dos cânticos israelitas que se tem registro (pelo menos é o que Abelzinho havia aprendido na Terra). Abelzinho acha aquilo estranho, mas termina o cântico pois está muito feliz de ter dado adeus ao mundo de pecado e sofrimento.
No dia seguinte, acorda com um som familiar ao fundo. “Get up, stand up…”, sussurra. “Conheço essa melodia”, ele diz. Afinal, quando era mais novo ouviu muito reggae com seus amigos, antes de ser convencido por seu instrutor bíblico que as músicas de Bob Marley não seriam o melhor que um cristão deveria ouvir. A melodia era idêntica, mas a letra era do Salmo 23. Decidiu sair e colher algumas frutas na árvore da vida, pois estava com fome. No meio do caminho, esbarra com Martinho Lutero e conversa um pouco sobre justificação pela fé e suas 95 teses que fundamentaram a Reforma Protestante, verdades absolutas que não abriu mão e pelas quais foi severamente perseguido na Idade Média. Ao final da conversa, Martinho diz “nos encontramos hoje à noite, no show”. “No show? Que show?” Abelzinho não entendeu. Quando chega na árvore da vida, ele entende. Tem uma placa de ouro e diamantes que diz: “Rock in Heaven, hoje às 20h”. Tem uma cruz, uma clave de sol e uma guitarra cunhadas na placa.
Abelzinho chega às 20h em ponto e vê alguns dos milhões de salvos que cantaram o Cântico do Cordeiro com ele, esperando de frente para um palco. Vê também alguns anjos sentados em uma mesa, manuseando alguns papéis. Ele se aproxima de um dos anjos, que tinha um crachá com seu nome: “Querubim Hendrix”.
– Sr. Hendrix, por favor, o que vai acontecer aqui hoje?
– Olá Abelzinho. Hoje teremos um show especial. Será dos quatro seres viventes. Lembra deles, de Apocalipse 4:8-11?
– Ah, sim, lembro-me. Eles “não têm descanso, nem de dia nem de noite, proclamando: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir.”
– Exato! O que a bíblia não disse é que eles são uma banda de Rock.
Abelzinho deixa de lado, por ora, a informação surpreendente acerca dos seres viventes e pergunta ao anjo:
– Estou impressionado que hoje há bem menos pessoas do que ontem, quando chegamos aqui. Onde estão todos?
– Ah, sim. Os que não vieram não gostam de Rock. Uma parte está com os 24 Anciãos (Apocalipse 4:4,10) no concerto que vai ter chamado “PaGod Eterno”. Uma outra parte está com Davi e Salomão, eles são rappers.
Abelzinho está muito confuso. Viveu sua vida até a volta de Cristo com uma posição bastante tradicional sobre os padrões bíblicos de adoração. Acreditava que suas vontades sempre deveriam ser submetidas às vontades de Deus, apresentadas na Bíblia. Sempre buscou manter hábitos que, segundo a instrução bíblica, agradariam a Deus. Evitou vícios como o cigarro e as drogas, melhorou sua alimentação e deixou de lado formas de adoração que não agradariam a Deus. Textos como Gálatas 2:20 e Filipenses 4:8 sempre o ajudaram a perseverar em viver um estilo de vida de acordo com o padrão de Cristo. Sempre pensou: “Jesus tem um padrão pelo qual devo seguir”. Para isso, pesquisou sobre todas as áreas da vida e como deveria se portar em determinadas situações. Pesquisou sobre música e adoração sob uma perspectiva bíblica (Efésios 5:19; Colossenses 3:16).
Para Abelzinho, porém, sempre ficou muito claro que suas obras e tentativas em si eram insuficientes para obter a salvação (Isaías 64:6). Ele nada podia fazer para se salvar. Sabia que tinha tendências para o mal e que seus gostos naturais em nada se aproximavam do padrão de Cristo, a quem conhecia mais e mais por meio da Bíblia. Todavia, à medida que se aproximava de Jesus, mais se empenhava em honrá-lo e glorificá-lo por meio de uma vida equilibrada. Ao invés de ritmos corporais ou melodias sensuais, buscava músicas com espiritualidade. Ritmos que elevassem seus pensamentos ao céu e que tivessem letras baseadas nas Escrituras. Por vezes se deparou com músicas que mesclavam ritmos pagãos com letras bíblicas, mas de pronto as rejeitava.
Pensou por um momento e perguntou ao Querubim Hendrix:
– Sr. Hendrix, me tira uma dúvida, por favor. Em qual show Jesus está?
– Abelzinho, ele está em todos os shows.
– Como assim? Quando chegamos ele estava conosco no côro celestial. Eu o vi. Mas não o vejo aqui.
– Ah, sim. Fisicamente ele está agora no PaGod Eterno. Mas ele, digamos assim, “está em todos os shows”. Afinal, ele ama a todos e quer a todos bem. Ele é muito eclético.
– Mas, Sr Hendrix, eu estava pensando. Quando iremos todos nos reunir? Afinal, eu não gosto de Rap. Posso aturar o Rock, pois antes de me converter eu frequentava alguns shows. Mas nunca aturei Rap. Depois que me converti, porém, sempre apreciei as músicas que estavam à altura do padrão bíblico.
– Abelzinho, você entendeu errado. Não existe esse negócio de “padrão bíblico musical”. Música sempre foi algo pessoal. Essa é uma verdade relativa. Cada um poderia seguir o que bem entendesse.
Abelzinho ficou ainda mais confuso. Ele havia compreendido, na Terra, que só haveria uma verdade, uma verdade absoluta: Jesus Cristo. A partir deste entendimento, compreendeu que o padrão de vida cristão acerca de tudo teria sua base em Cristo. Afinal, Jesus é o caminho, a verdade e a vida (João 14:6). Jesus era a verdade absoluta. Portanto, todos os hábitos e padrão de adoração deveriam ser submetidos a Jesus. Da sexualidade à alimentação, da vestimenta à liturgia, tudo teria um referencial externo ao indivíduo: a vontade divina, a vontade de Cristo. O ser humano deveria se submeter a Cristo e, pouco a pouco, compartilharia de sua vontade, de seus gostos e de seus comportamentos. Um processo de santificação (1 Coríntios 6:11; Efésios 1:4). Abelzinho continuou:
– Mas, Sr. Hendrix, e toda aquela história de “fogo estranho no altar” (Levítico 10) e da oferta que Deus rejeitou de Caim (Gênesis 4)?
– Abelzinho, você faz muitas perguntas. Por que se preocupa com isso?
– Porque se a adoração a Deus depende de nossos gostos pessoais, Deus não poderia ter punido Nadabe e Abiú. Não poderia ter punido Caim. Eles adoraram do jeito que gostavam. Aliás, por que ele condenou as práticas das nações vizinhas a Israel? Eles só queriam adorar sacrificando crianças, além de praticar orgias e tocar músicas com uso de tambores e pandeiros. Davi não teve problemas com isso? Ele mudou os instrumentos na segunda tentativa de transferir a arca para Jerusalém, já que na primeira ele fez uso de elementos de adoração errados. A propósito, por que Deus condenou reis de Israel e Judá pelas formas de adoração que eles quiseram praticar?
– Acho que você veio para o lugar errado, Abelzinho.
Abelzinho está desiludido com o Paraíso. Ele descobriu um Deus incoerente. Um Deus que, além de hipócrita, não é Deus de fato. Toda a compreensão bíblica de que Deus estabelece um padrão para o ser humano seguir está fundamentada no caráter imutável de Deus.
O céu de Abelzinho é pós-moderno. A pós-modernidade, que começa após a era da razão (século XIX), é uma nova era de abandono de conceitos absolutos da verdade e o novo compromisso com a filosofia relativista. Se antes, na era cristã (até o século XVIII) e na modernidade (século XIX), a humanidade sustentava visões absolutas da verdade, na pós-modernidade cada um detém a sua verdade. “O que é verdade para mim não é verdade para você” ou “o que é bom para mim pode não ser bom para você”. Tal visão acerca da realidade impacta desde os hábitos mais triviais até o entendimento das questões espirituais, especialmente o cristianismo.
É evidente como a igreja cristã absorveu de maneira exponencial a filosofia pós-moderna, especialmente ao longo dos últimos 20 anos. Esta quebra do conceito absoluto da verdade e das ordenanças divinas registradas na Bíblia deu origem a uma verdadeira bagunça interpretativa das Escrituras e a assimilação de vários elementos da cultura atual que são diametralmente opostos à instrução bíblica. A turma que promove a relativização dos conceitos bíblicos em prol da mistura com ensinamentos antibíblicos é a velha turma do “nada a ver”.
Como a direção da vida e referencial moral deixou de ser a Palavra de Deus e até mesmo a razão, como pregavam os Iluministas, o ser humano hoje se vê inserido em uma cultura que cultua o indivíduo e suas preferências, deixando de lado referenciais absolutos, especialmente a vontade de Deus revelada em sua Palavra. A capacidade de reinterpretar o que está longe de ser “reinterpretável” é assombrosa.
A coisa começa pequena e evolui. Primeiro, diminuímos a importância da Lei de Deus. Em seguida, damos ênfase a uma “experiência religiosa” ao invés do “conhecer a vontade de Deus”. A experiência religiosa se baseia no bem-estar, em fazer o bem e se sentir bem. A experiência religiosa se resume a cultos curtos com menos sermões, menos orações e mais música, mais “aleluias”. Como os cultos ganham elementos mais místicos e menos devocionais, começamos a apelar para igrejas com jogos de luzes e painéis de LED. As músicas antigas são muito lentas; as letras são bonitas, mas o ritmo não nos emociona. Vamos, então, preencher com todos os instrumentos possíveis (e ignorar seus efeitos psicológicos e espirituais) e mudar os ritmos. O que nos emociona? Músicas com batidas, no volume máximo. Arranjos disformes e gritarias. A canção que antes focava na introspecção e no canto congregacional, agora foca na extensão vocal e em sua capacidade de originar o choro. Afinal, como vamos “atrair” pessoas para a igreja? Vamos unir o útil ao agradável: vamos compor em estilos mundanos para atrair o mundo. Afinal, o que importa é a letra.
Abelzinho não deveria se surpreender. O que ele está vendo no céu é a imagem do cristianismo pós-moderno. Cristãos (não todos) que abandonam o conceito bíblico da verdade absoluta e da vontade absoluta divina e que se entregam à relativização da verdade e da escolha baseada nas suas vontades egoístas. O céu de Abelzinho não foi feito para uma congregação, para um povo; foi feito para seres egoístas e que não estão dispostos a conhecer e aceitar os preceitos divinos da verdade e de sua vontade.
Vale ressaltar que Abelzinho sabe que não somos todos iguais. Sabe que temos nossas preferências pessoais. Sabe que alguns gostam de morango e outros gostam de maracujá. Sabe que Deus nos fez seres com personalidade e com poder de escolha. Todavia, Abelzinho também sabe que nós não somos donos de nós mesmos (1 Coríntios 6:19-20). Deus é nosso criador. Nós temos vida nEle e somente nEle. Uma vez desconectados dEle, não há vida. E qual o meio da vida? Cristo, pois ele é o caminho, a verdade e a vida. Sendo assim, Abelzinho está convicto de que nossas preferências pessoais terminam quando a vontade explícita de Deus é conhecida. Uma vez conhecida, nossa oposição à sua vontade é rebelião, que é pecado. E o salário do pecado é a morte, a morte eterna.
Se no céu de Abelzinho não há verdade absoluta e, consequentemente, não há um padrão de adoração a Deus (externo às vontades humanas), não há motivação real para produzir músicas sacras, para seguir as orientações de alimentação, para se vestir adequadamente, enfim, para seguir preceitos supostamente absolutos que teriam sido dados pelo próprio Deus. É um céu desprovido de ordem, um céu que quem governa não é Deus, mas o homem. O homem determina o que é bom para ele. O que não é bom para ele, ele descarta.
A imagem é a completa divisão da igreja. Na verdade, uma dupla divisão. A divisão natural, que ocorre entre aqueles que querem seguir um padrão absoluto da vontade divina e aqueles que a relativizam. E a divisão que ocorre dentro da religião relativizada, com grupos que praticam gostos específicos em suas motivações egoístas.
O céu de Abelzinho é um céu para Caim. É um paraíso em que a rebelião é permitida, de modo que ofertas não aprovadas são aceitas. É um céu em que Nadabe e Abiú fazem rituais que vão contra as ordenanças divinas e saem imunes. Um céu em que nada é absolutamente certo ou absolutamente errado. Começa com coisas pequenas, como música ou vestimenta, mas termina em assuntos bem mais importantes: “Por que o casamento é monogâmico? Por que não devo roubar? Por que devo honrar aos pais?” As ideias têm consequências.
Por que tão facilmente cedemos aos nossos gostos pessoais e rejeitamos a vontade de Deus? Por que tentamos continuamente unir coisas que evidentemente não são aprovadas por Deus com coisas santas? Por que continuamente buscamos meios de justificar o que é errado?
É válido finalizar com algumas considerações importantes.
A alegoria é o que é; uma alegoria. É uma caricatura que busca expor como certas ideias não têm fundamento. A alegoria, porém, não engloba aspectos importantes que precisam ser levados em consideração. Todavia, a alegoria não perde sua validade.
Muito é dito sobre o ministério musical e sua importância, em especial em como alcançar um mundo em um contexto tão secularizado. Afinal, como mencionado acima, vivemos em um cultura pós-moderna que se esqueceu do absoluto. Vale lembrar, porém, que nada disso é novo. A Bíblia relata sociedades obstinadas que viveram em um contexto que desprezava a vontade divina e praticavam simplesmente o que queriam. O ponto é que a mensagem de advertência sempre foi a de levar o padrão divino com amor, sem, porém, distorcê-lo.
Por mais hostil que este texto possa parecer, especialmente sua primeira parte, o intuito é evidenciar como às vezes expomos Deus ao ridículo. Quem é questionado por alteração de padrões é Deus e não o ser humano, o que é uma injustiça, pois Ele nunca mudou.
Adaptar nossa pregação em prol do evangelho é bíblico (1 Coríntios 9:20-23). Não há preconceito. Manipular, porém, ordenanças e preceitos divinos é errado. Colocar nossos gostos pessoais contaminados de pecado acima do padrão bíblico, isso sim é um problema. Quem governa o céu é Deus, não o homem.
JDL