
Explorando o Texto
A crença nos pressupostos evolucionistas e na filosofia naturalista, o preconceito com a Bíblia ou até o mero desinteresse são, talvez, os motivos mais comuns que levam as pessoas a duvidar da historicidade do Dilúvio, antes mesmo de avaliarem suas possíveis evidências (e se há ou não tais evidências).
Antes mesmo de eliminar a plausibilidade do Dilúvio, muitos sequer conhecem o texto bíblico acerca do evento, que quando comparado a outras fontes antigas (cf. a Parte 3: História e Arqueologia) apresenta uma riqueza singular de detalhes (que podem ser analisados através de diversos quesitos técnicos), colocando em cheque uma possível interpretação fictícia, sem qualquer justificativa. Dessa forma, faz-se necessário um estudo cuidadoso do texto bíblico e se, por óbvio, este poderia ser considerado literal (histórico), razoável e, por fim, “provável”.
A esta altura, cabe ao leitor não-cristão (e ateu) e não-criacionista creditar à Bíblia uma fração mínima do “benefício da dúvida”, uma vez que, antes de evidências científicas, buscaremos expor e analisar o quadro literário apresentado em Gênesis 6, 7 e 8. A análise do texto, antes mesmo das evidências “extra bíblicas”, pode, de antemão, eliminar ou embasar a probabilidade de o Dilúvio (enquanto catástrofe natural) ter sido a causa de alguns fenômenos hoje vistos.
Gênesis 6, 7 e 8
O relato bíblico do Dilúvio pode ser sumarizado da seguinte forma[1]:
1) A impiedade do mundo provoca a ira de Deus e causa o Dilúvio (Gênesis 6:1-7);
2) Noé acha graça [misericórdia perante Deus] (Gênesis 6:8-13);
3) A ordem, forma e finalidade da arca (Gênesis 6:14-22);
4) Noé, com sua família, e as criaturas viventes, entram na arca (Gênesis 7:1-16);
5) Início e desenrolar do Dilúvio (Gênesis 7:17-24);
6) As águas baixam (Gênesis 8:1-3);
7) A arca repousa sobre o Ararate (Gênesis 8:4-6);
8) O corvo e a pomba (Gênesis 8:7-14);
9) Noé, ao receber a ordem, sai da arca (Gênesis 8:15-19);
10) Ele [Noé] levanta um altar e oferece sacrifícios (Gênesis 8:20);
11) Deus aceita os sacrifícios de Noé e promete não tornar a amaldiçoar a Terra (Gênesis 8:21-22).
A raça humana [pós-queda] cresceu rapidamente, não só em impiedade, mas em número. Entre os muitos perigos para os que temiam a Deus estavam as belas filhas dos descrentes. Mulheres passaram a ser desposadas, não por causa de sua virtude, mas pela beleza, e a consequência foi que a impiedade e a maldade fizeram grandes avanços entre os descendentes de Sete.[2] Ou seja, à medida que a descendência de Adão aumentava, dividida “nominalmente” entre os descendentes de Caim e de Sete, estes, por sua vez, ao verem a formosura das filhas de Caim, “davam-se em casamento”[3]. “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gênesis 6:5).
O ápice do desapontamento de Deus com o homem está explicito em Gênesis 6:6,7:
“Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra; e isso cortou-lhe o coração. Disse o Senhor: ‘Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, os homens e também os animais grandes, os animais pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito’”.[4]
Deus, porém, em sua justiça e amor, concedeu graça ao único homem que verdadeiramente O seguia (temia) naquele tempo: Noé.
“Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor” (Gênesis 6:8). Nestas palavras a misericórdia é vista em meio à ira. Por elas, Deus assegurou a preservação e a restauração da humanidade. […] A profundidade com que Deus ama os seres humanos, mesmo em seu estado caído, pode ser observada de várias formas.[5]
Daí, o plano (de engenharia) para salvar Noé, sua família e todo aquele que decidisse voltar a Deus (cf. 2 Pedro 2:5) é apresentado. Após apresentar o projeto completo da Arca, Deus mostra a Noé o “passo-a-passo” da preparação para o embarque e quais animais deveriam embarcar.[6]
O quadro temporal resumido do dilúvio mostra que por 40 dias a chuva caiu sobre a terra (Gn. 7:12), e as águas foram baixando pouco a pouco durante 150 dias (Gn. 8:3, 7:24). Depois disso, só no quinto mês depois de a chuva começar a arca firmou-se no monte Ararate (Gn. 8:4). Cerca de onze meses depois de a chuva começar, as águas secaram (Gn. 8:13). E exatamente um ano e dez dias depois de o Dilúvio ter começado, Noé e sua família pisaram em terra seca (Gn. 8:14).[7][8]
Enfim, após 1 ano e 11 meses, os tripulantes saíram da arca. Certamente, o cenário não era dos mais amistosos, além de que os oito tripulantes humanos eram, com efeito, tudo o que havia restado da humanidade.
A conclusão do relato é uma promessa:
“O Senhor sentiu o aroma agradável e disse a si mesmo: ‘Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, pois o seu coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância. E nunca mais destruirei todos os seres vivos como fiz desta vez. Enquanto durar a terra, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais cessarão’” (Gênesis 8:21,22).
“Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo-lhes: ‘Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gênesis 9:1).
“Deus prosseguiu: ‘Este é o sinal da aliança que estou fazendo entre mim e vocês e com todos os seres vivos que estão com vocês, para todas as gerações futuras: o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da minha aliança com a terra. Quando eu trouxer nuvens sobre a terra e nelas aparecer o arco-íris, então me lembrarei da minha aliança com vocês e com os seres vivos de todas as espécies. Nunca mais as águas se tornarão um dilúvio para destruir toda forma de vida’” (Gênesis 9:12-15).[9]
Para um estudo mais profundo do texto bíblico, sobretudo quanto às suas implicações teológicas, recomenda-se a consulta das referências ao final.
Entretanto, visando preparar o cenário necessário para os estudos das próximas partes desta série de artigos, os aspectos essenciais do relato bíblico e períodos do evento são suficientes para continuarmos.
Jônatas Duarte Lima
Referências
[1] Comentário bíblico Adventista do Sétimo Dia, Vol. 1 / editor da versão original em inglês Francis D. Nichol; editor da versão em português Vanderlei Dorneles. – Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011. – (Série Logos).
[2] Ibid., p. 237.
[3] Jesus exortou o povo de seu tempo a atentar, vigilante, contra as práticas dos antediluvianos: “Como foi nos dias de Noé, assim também será na vinda do Filho do homem. Pois nos dias anteriores ao dilúvio, o povo vivia comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca; e eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e os levou a todos. Assim acontecerá na vinda do Filho do homem” (Mateus 24:37-39). Além dos aspectos profético e prático das palavras de Jesus, vale ressaltar sua compreensão literal na referência ao Gênesis.
[4] Alguns críticos da Bíblia afirmam que há uma possível contradição, uma vez que em 1 Samuel 15:29, por exemplo, é dito que “[Deus] não se arrepende”. Entretanto, uma análise contextual do relato é contra tal argumento. Contextualmente, além do plano imediato de salvação (arca) para aquele (único homem) que achou graça perante os olhos de Deus (Noé, Gn. 6:9, 7:1), e da mensagem de advertência dada por Deus (através de Noé) ao povo da época (Mateus 24:38,39; 2 Pedro 2:5), observa-se o descontentamento de Deus para com os atos pecaminosos do homem, proveniente de sua queda (Éden). Johan Peter Lange (1802-1884), teólogo calvinista alemão, afirma categoricamente: “A peculiarly strong anthropopathic expression, which, however, presents the truth that God, in consistency with his immutability, assumes a changed position in respect to changed man (Ps. 18:27), and that, as against the impenitent man who identifies himself with the sin, he must assume the appearance of hating the sinner in the sin, even as he hates the sin in the sinner. But that Jehovah, notwithstanding, did not begin to hate man, is shown in the touching anthropomorphism that follows, ‘and it grieved him in his heart’” (Lange Commentary, disponível em www.biblehub.com).
[5] Comentário bíblico Adventista do Sétimo Dia, Vol. 1, p. 239, 240.
[6] A análise crítica acerca da possibilidade física e biológica para que a arca suportasse uma quantidade considerável de animais em meio à grande tempestade será feita na Parte 4: Engenharia.
[7] GEISLER, N. Enciclopédia de apologética. – São Paulo: Editora Vida, 2002. p. 285, 286.
[8] A dedução do tempo total do dilúvio (1 ano e 10 dias) é um dos argumentos que pesam contra aqueles que defendem um Dilúvio “local” e não “global”. Abordaremos este aspecto da maneira mais completa na Parte 5: Geologia.
[9] “O estabelecimento do arco-íris como um sinal da aliança, de acordo com a promessa de que nunca mais haveria outro dilúvio, pressupõe que ele apareceu naquela ocasião, pela primeira vez, nas nuvens. Esse é um indício adicional de que nunca havia chovido antes do dilúvio [cf. Gn. 2:5,6]. O arco-íris é produzido pela refração e reflexão da luz solar através das redondas gotas de chuva sobre as quais os raios incidem. […] O arco-íris, um fenômeno físico natural, era um símbolo apropriado da promessa de Deus de nunca mais destruir a Terra por uma inundação” (Comentário bíblico Adventista do Sétimo Dia, Vol. 1, p. 255).
Leia também “O Dilúvio do Gênesis: Verdade ou Mito? | PARTE 3”
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