
Em A Morte da Razão (1968), Francis Schaeffer (1912-1984) delineia como a origem do homem moderno pode ser atribuída a diversos períodos, a começar por uma revolução, ainda que menor, iniciada por Tomás de Aquino (1225-1274). Conforme já resenhamos, à medida que a história avança com seus pensadores e movimentos diversos, a confusão criada acerca da real posição do homem com relação à verdade e suas implicações aumenta, de forma que o equilíbrio necessário entre as áreas sob análise (“andares”) dá lugar a uma autonomia exacerbada a somente uma delas (natureza ou graça e, posteriormente, fé ou racionalidade) que, como o autor explica, configura a insuficiência que o homem moderno se encontra (confira este texto).
O mesmo se deu com relação à construção do pensamento científico, que antes fora essencialmente natural e, hoje, deu lugar a uma ciência naturalista, de forma que se esqueceu de sua motivação original e hoje exerce uma autonomia insuficiente no que tange à compreensão existencial do homem moderno, mesmo diante de avanços esplendorosos. Como reflexão ao tema, compilamos abaixo o início do capítulo 3 de A Morte da Razão, intitulado “A Ciência Moderna nos Primórdios”.
A ciência exerceu papel de grande destaque na situação que temos delineado. O que nos importa reconhecer, entretanto, é que a ciência moderna, em seus primórdios, foi o produto daqueles que viveram no consenso e cenário do Cristianismo. Um homem como J. Robert Oppenheimer, por exemplo, apesar de não ser cristão, compreendeu esse fato. Ele afirmou que o Cristianismo era necessário para dar origem à ciência moderna. O Cristianismo era necessário para o começo da ciência moderna pela simples razão de que o Cristianismo criou um clima de pensamento que colocou o homem em posição de investigar a forma do universo.
Jean-Paul Sartre (1905-1980) afirmou que a grande questão filosófica é que algo existe e não que nada existe. Não importa o que o homem pensa, ele tem de se haver com o fato e o problema de que há algo que realmente existe. O Cristianismo oferece uma explicação do porquê dessa existência objetiva. Em contraste com o pensamento oriental, a tradição hebraico-cristã afirma que Deus criou um universo real fora de Si mesmo. Não estou atribuindo à expressão “fora de Si mesmo” uma acepção espacial; quero apenas dizer que o universo não é uma extensão da essência de Deus. Não é simplesmente um sonho de Deus. Algo existe realmente, para se pensar, com que tratar e para investigar, revestido de uma realidade objetiva. O Cristianismo outorga a certeza da realidade objetiva e de causa e efeito, certeza suficientemente sólida para que sobre ela se assente o fundamento do saber. Assim, existem realmente o objeto, e a história, e a causa, e o efeito.
Além disso, muitos dos primeiros cientistas tiveram a mesma perspectiva geral de Francis Bacon (1561-1626), que afirmou, na obra Novum Organum Scientiarum [O novo órgão da ciência]: “O homem, pela Queda, decaiu ao mesmo tempo do estado de inocência e do domínio sobre a natureza. Ambas as perdas, entretanto, podem ser reparadas em parte mesmo nesta vida – a primeira, pela religião e pela fé; a segunda, pelas artes e pelas ciências.” Portanto, a ciência como ciência (e a arte como arte) foi admitida, no melhor sentido, como atividade religiosa. Note-se, na citação acima, o fato de que Francis Bacon não via a ciência como autônoma, pois se situava no âmbito da revelação das Escrituras, ao ponto da Queda. Entretanto, dentro dessa “forma” a ciência (e a arte) era livre e de valor intrínseco não só diante dos homens como também de Deus.
Os primeiros cientistas compartilharam também da perspectiva do Cristianismo na crença de que há um Deus racional, que criou um universo racional e, portanto, o homem, mediante o uso da própria razão, possui a capacidade de descobrir a forma do universo.
Essas contribuições tão importantes, que nós atualmente tomamos por fatos óbvios, deram impulso à ciência moderna em seus primórdios. Sem dúvida, seria uma grande questão considerar se os cientistas do presente, que operam sem esses pressupostos e motivos, teriam ou poderiam ter dado início à ciência moderna. A natureza teve que ser libertada da mentalidade bizantina e ser restaurada a uma correta ênfase bíblica. E a mentalidade bíblica é que deu origem à ciência moderna.
Nos seus primórdios, a ciência era natural, porque tratava de coisas naturais, mas estava longe de ser naturalista, pois embora sustentasse a uniformidade das causas naturais, não concebia Deus e o homem como presos dentro do mecanismo. Tais cientistas nutriam a convicção, primeiro, de que Deus propiciou conhecimento ao homem – conhecimento de Si próprio e também do universo e da história – e, segundo, de que Deus e o homem não eram partes do mecanismo e poderiam afetar a operação do processo de causa e efeito. Dessa forma, não havia uma situação autônoma no “andar de baixo”. Assim se desenvolveu a ciência, uma ciência que tratava do mundo natural e real, que, porém, ainda não se havia tornado naturalista. (Francis Schaeffer, A Morte da Razão, pág. 37-39)
Indicamos fortemente a leitura completa não só deste capítulo, como da obra toda.
Jônatas Duarte Lima